TEDH , 1. Secção, Ainis e outros c. Itália, Queixa n.º 2264/12, Acórdão de 14 de setembro de 2023
CEDH, Artigo 2.º da CEDH, direito à vida, vertente substancial.
CEDH, falecimento por overdose de um detido para validação de detenção e decisão sobre prisão preventiva em esquadra de polícia. Homicídio por negligência imputável ao Estado.
Enquadramento do caso
Três cidadãos italianos queixaram-se ao TEDH da violação da parte da Itália, do direito à vida de um toxico dependente detido por posse, em quantidade acima do permitido por lei, de estupefacientes. O que causa particular perturbação ao leitor deste Acórdão é que a vítima, tendo sido detida para validação de prisão preventiva, enquanto aguardaria julgamento, por posse de quantidades acima do permitido por lei, de estupefacientes, veio a falecer na Esquadra por overdose dos mesmos estupefacientes.
Os factos
Em certa data especificada no Acórdão (§4) a vítima saiu de casa, foi colhida pelos agentes da Policia à porta do edifício, tendo uma busca domiciliária infrutífera sido feita logo a seguir. O jovem que viria a falecer já estava num estado psicótico difícil, tendo sido levado a braços pelos agentes, escadaria abaixo. No carro da polícia, a vítima queixou-se de se sentir mal, e transpirava fortemente, com um líquido translucido a correr da sua boca. Num primeiro tempo daquela madrugada, a vítima conseguiu dormir algumas horas de um sono reparador. Tendo solicitado autorização para se dirigir à casa de banho quando acordou, os agentes ouviram um forte ronco e uma queda no chão. Aberta a porta, jazia a vítima no chão. Chamada uma ambulância, esta foi levada ao hospital mais próximo, onde foi tentada, em vão, a reanimação. Foi declarado o seu óbito a uma hora determinada da referida madrugada. Foram observados sinais tanatológicos difíceis de contrariar na Esquadra, como sejam a cianose (o arroxear das unhas, dos lábios e das pálpebras) e fortes dificuldades respiratórias.
Como sucede nestes casos, não foi possível detetar a causa imediata da morte (a que Aristóteles chamaria a causa eficiente), pois se registou um colapso simultâneo dos órgãos vitais da pessoa, que usa designar-se como “paragem cardio respiratória”. Mas o estado da Ars medica permite deduzir, com alguma margem de certeza, que este colapso ficou a dever-se a uma overdose de cocaína ingerida no episódio da ida à casa de banho, o que colocou logo, com alguma intranquilidade para todos os operadores judiciais envolvidos, a questão de saber como é que um toxicodependente preso por ser, também, traficante, ter na sua posse uma quantidade de cocaína superior aos máximos legais autorizados, pôde retê-la consigo ou ter obtido, eventualmente, de terceiro, na Esquadra, a bolota que, consumida na casa de banho, lhe iria provocar o referido colapso vital.
Ainda no domínio dos factos (pois o direito nacional e a evolução processual são matéria de facto na adjudicação a que o TEDH procede: é direito, o direito da CEDH e da sua jurisprudência que ele aplica), cumpre registar que foi apresentada a competente queixa crime a qual foi saldada pelo arquivamento do Ministério Público. Tanto quanto se sabe nada foi requerido ou não foi requerida a intervenção do juiz dos indagini preliminari segundo o direito italiano.
Em contrapartida, os queixosos optaram por uma ação de indemnização contra o Estado na pessoa do Ministro da Administração Interna, pelo homicídio negligente do seu familiar (filho da mãe proponente, enteado do companheiro desta e irmão da terceira queixosa), a qual lhes foi concedida na primeira instância cível (competente para julgar estes casos na Itália), no valor de 100.000€. Ao que o MAI reagiu com recurso de apelação, em que lhe foi dada razão e negado provimento ao pedido dos queixosos. Esgotados os meios internos, queixaram-se ao TEDH. Nos §§ 26 e 27 do Acórdão do TEDH é referido que o tribunal de primeira instância cível colocou a questão que preocupou os juristas, de saber como é que a vitima tivera acesso àquela bolota com que colocara termo à sua vida. Sendo as hipóteses ter conseguido escondê-la da revista, ou tê-la obtido de terceiro na Esquadra. A decisão do tribunal de 1.ª instância cível considerou que, ou a revista não foi diligente, ou a vigilância da vítima falhou. A segunda instância, em sede de reexame da matéria de facto, não descortinou qualquer presença nas imediações do lugar onde se encontrava a vítima naquela madrugada. Logo o que terá falhado parece ter sido a revista corporal.
O Tribunal de Segunda Instância salientou, em seus considerandos (já a pender para ratio decidendi do que para simples obiter dicta) que a vítima era, além de consumidor, também “dealer”, ou seja vendedor de droga, com condenações anteriores, o que explicava a posse de quantidade superior ao permitido por lei. Contra a exigência pelos queixosos, de que a revista corporal mais invasiva devia ter sido pedida pela polícia ao Ministério Público, a Segunda Instância entendeu que a polícia podia se bastar com o que havia obtido, pois, além da droga inicialmente apreendida, acima do máximo legal permitido, tinha sido encontrada mais droga na posse da vítima. Os agentes da esquadra estariam em condições razoáveis para acreditar não existir mais droga na posse da vítima.
O Direito.
Não existindo fundamentos de inadmissibilidade, a queixa foi aceite para exame do TEDH, no tocante ao seu mérito.
Como é habitual, o TEDH fixou o quadro jurisprudencial de referência que o orienta neste Acórdão, nos seus Acórdãos, proferidos nos casos LCB c Reino Unido (1998), Keenan c. Reino Unido (2001), Mizigarova c Eslováquia (2010), Eremiasova e Outra c. R. Checa ( 2012) e Daraibov c. Croácia (2023).
O TEDH recordou o seu principal standard ou princípio geral nesta matéria, segundo o qual, sempre que um individuo está detido e se encontra na posse das autoridades do Estado, e vem a falecer, se constitui ipso facto uma prova prima facie contra o Estado a desfazer para além de qualquer dúvida razoável.
Enfim, também os casos P.H. c. Eslováquia (2022), Anguelova c. Bulgária (2002) e Kotilainen e Outros c. Finlândia (2020) integram este conjunto de referências para o efeito da fixação dos princípios gerais que nortearam o modelo de decisão que o TEDH construiu para este caso (§§ 53,54,55,56,57)
A Avaliação do TEDH
Aplicando estes critérios ao caso sub judice, o TEDH afirmou, em primeiro lugar, uma questão de bom senso judicial, segundo a qual as autoridades sabiam ou deviam saber que aquele indivíduo na sua circunstância atual, corria perigo de vida (ver Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, O Problema da consciência da ilicitude em Direito Penal, a integração do perigo concreto, da matéria de facto, no tema da consciência da ilicitude, que já é questão de direito, está correta. Pois a consciência daquele concreto perigo em que se encontrava a vítima, é matéria de direito relevante para a integração do conceito jurídico de consciência da ilicitude).
Para esta observação-pressuposto da decisão judicial está o facto, não negado por ninguém, de a vítima já se encontrar em condição física debilitada no momento da sua detenção e condução à esquadra, para apresentação a Magistrado.
Outro ponto a merecer o escrutínio atento do TEDH foi a afirmação-tipo, sempre repetida nos casos análogos, do Governo, segundo a qual a vítima, sendo portadora da referida bolota a teria enrolado na mão e colocado na boca aquando da revista corporal, para tornar a coloca-la num bolso, finda esta revista. Esta apreciação algo seca, que veio alicerçada em relatório de minuta sempre repetida da polícia, não convenceu o TEDH, que o deixou expressado em seu Acórdão.
À exceção oposta pelo Governo, segundo a qual uma outra modalidade de revista corporal seria demasiado invasiva, o TEDH respondeu com a sua jurisprudência proferida no caso Fernandes de Oliveira c. Portugal entre outros. Ou seja, o caráter intrusivo mede-se pela lei da necessidade. Melhor o Estado vir a ser condenado por excesso de intrusão numa revista desta arte, do que ser condenado pela sua omissão, acabando por dar origem a que uma morte tivesse tido lugar. Não se trata pela sucumbência, para usar um termo de processo civil italiano, de cair de Caríbdis em Scylla. Pois a diferença está na vida que se teria poupado. Por esta razão, uma revista mais invasiva num caso desta natureza, não teria feito incorrer o Estado na violação dos art.ºs 3.º (maus tratos em detenção) nem na do art.º 8.º § 1 da CEDH (direito à vida privada e familiar na vertente da intimidade do sujeito).
Por fim, no Relatório de minuta repetitiva entregue ao Ministério Público, numa investigação que durou cerca de um ano, a polícia, apesar deste carácter repetitivo, acrescentou que não podia ter estado a vigiar a vítima, por todo o tempo precedente à sua ida à casa de banho.
Por isto verificou-se a violação da parte das autoridades italianas, do direito à vida da vítima com o interesse, se se puder ainda falar assim, de não se tratar de “mera” violação processual do direito à vida (por investigação insuficiente por exemplo), mas de violação substantiva do direito à vida, ou seja a Itália foi condenada pelo homicídio negligente da vítima.
Esta condenação obteve maioria de seis juízes em sete, os queixosos ficaram credores de 30.000€, além dos honorários do advogado, contra os 100.000€ decretados na revogada decisão da primeira instância italiana.
O Juiz Bosnjak juntou a sua opinião dissidente ao Acórdão.
Para este juiz a negligência não integra o homicídio que se imputa às autoridades. Segundo este magistrado, não houve negligência das autoridades (logo não houve homicídio), pois elas fizeram o que teria sido exigível no sentido de apresentar a vítima em condições para a validação da sua prisão pelo Ministério Público ou um juiz de instrução. Além de a argumentação expendida tender para excessivo garantismo, a exigência do acompanhamento em sede de vigilância da parte de um agente da polícia, seria claramente excessiva.
Para o juiz Bosnjak este Acórdão teria sido a oportunidade para o TEDH criar uma linha de decisões futuras para os casos confinado com a negligência das autoridades, no sentido de saber, 1. Se a negligência é relevante, 2. Na afirmativa, em que condições.
O juiz Bosnjak encontra muitas dificuldades em estabelecer o nexo de causalidade entre a negligência das autoridades e a morte da vítima insuficientemente vigiada.
Isto vai além, deve se notar, da presunção de culpa resultante do desaparecimento da vítima numa esquadra de polícia. Trata-se aqui, ou de firmar esta presunção de facto (a prova prima facie fazendo presumir a culpa das autoridades) ou de a infirmar (apesar da aparência, este é um caso em que não se verificou negligência; esta é a opinião do Juiz Bosnjak).
Na análise da negligência das autoridades, haveria 1. Que analisar a urgência médica (neste caso, dado o episódio do sono reparador, não existia urgência hospitalar), 2. Saber até que ponto podia ir o controlo do indivíduo em questão (no sentido de saber até aonde se podia chegar para lhe impedir a ingestão da última dose, fatal). 3. A questão da revista corporal devia ter sido definida, no sentido de as partes chegarem a acordo sobre os procedimentos em que deve normalmente consistir, como um mínimo ético comum a ambas as partes, uma vez que a lei italiana não obriga às revistas corporais em detenção na Esquadra. 4. O facto de já se ter encontrado e apreendido a maior parte da cocaína de posse deste indivíduo permitia às autoridades entender que teriam esgotado a revista corporal. E neste ponto ambos a maioria e o juiz Bosnjak estão de acordo. 5. A vítima esteve sempre algemada fora da casa de banho. Foi na casa de banho que, desalgemado, pôde ingerir a bolota referida, colocando-se a questão de até onde deve ir o controlo pessoal de um arguido. 6. Enfim, e como já referido anteriormente, o juiz Bosnjak não vislumbra a possibilidade de existir um cão-anjo da guarda que supervisione atentamente todos os gestos do detido previamente à sua entrada na casa de banho.
Cumpre agora examinar, da perspetiva do leitor assíduo da jurisprudência do TEDH, a posição da maioria e a posição do juiz Bosnjak.
O curioso em todo este Acórdão, tanto do lado da maioria como do juiz Bosnjak, é que, tendo se descrito o acórdão proferido na primeira instância nos §§ 26, 27 e 28, em que a causa dos queixosos mereceu uma indemnização acima da concedida pelo TEDH; ninguém tenha mais referido esta sentença da 1.ª instância.
É que a leitura por já mais de duas décadas destes inestimáveis Acórdãos permite vislumbrar a existência de um 7.º ponto ao método de decisão decerto justamente proposto pelo juiz Bosnjak, com relevância operacional tanto no geral (modelo abstrato de decisão), como no particular (modelo concreto de adjudicação do caso). O da existência de uma decisão judicial interna anterior ao Acórdão do TEDH que decida favoravelmente a pretensão, no sentido em que uma maioria judicial do TEDH a pretende adotar.
É que, já depois da instituição do tribunal único e permanente europeu em 01/11/1998, ainda o TEDH usava não apenas verificar a existência de uma lei, ou até de uma prática favorável à posição do queixoso, mas também o indício formado, em abono da decisão judicial favorável às pretensões de um queixoso, pela existência de uma decisão judicial nacional anterior favorável. A razão deste standard de facto usado pelo TEDH, repousava na ideia segundo a qual se a instâncias superiores conhecem o direito (e é ver o tédio com que juízes conselheiros e desembargadores referem as suas altas funções judiciais, muitas vezes), os juízes de primeira instância estão no cerne da vida (e é ver o entusiasmo com que os mesmos altos magistrados referem o seu tempo passado em primeira instância e os casos porventura dificílimos que tiveram de adjudicar, nas sessões de formação, colóquios e outros encontros dedicados à decisão judicial).
Este critério afirmado mais de uma vez na jurisprudência do TEDH e que, em sede de comentário de jurisprudência, a que muitos se dedicam, permite saber a quem lê a mesma que, além da lei, se assistir um facto da vida jurídica (como uma sentença ou um parecer) relevante em abono da pretensão de queixa de um requerente perante o TEDH, este muito provavelmente, verá a sua pretensão atendida. Pois os factos (ver supra) estão em seu apoio.
É este sétimo critério de apreciação que o juiz Bosnjak omite. E é no entender de quem vive há mais de vinte anos a apreciar esta jurisprudência do TEDH, uma grave falha.
Autor: Paulo Marrecas Ferreira
Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos