TEDH , 1ª Secção, F.B. c. Bélgica, Queixa n.º 47836/21 Acórdão de 06 de março de 2025

CEDH, Artigo 8.º § 1. da CEDH, direito à vida privada e familiar na vertente da obtenção do necessário consentimento do lesado para a prática de ato médico de natureza invasiva.
CEDH, não transmissão da informação sobre a natureza do ato a praticar ser médico na obtenção de um consentimento administrativo obrigatório em razão de ser praticado em contexto de controlo de imigração.
Enquadramento do caso
F. B., uma cidadã guineense (Konakry), da etnia Fulani, e de confissão muçulmana entrou não acompanhada na Europa, pela Alemanha, aonde se apresentou como maior adulta (ver § 19, o que ficou registado no sistema Eurodac), e aí permaneceu por três meses, para chegar à Bélgica aonde se apresentou como menor não acompanhada.
Os factos
Solicitou a concessão de asilo político e o estatuto de refugiada que lhe corresponde, radicando-o no casamento forçado que lhe seria imposto se permanecesse em seu país de origem, uma vez que, sendo da etnia Fulani, não teria como fugir ao seu destino.
Ao ter hesitado perante as autoridades no tocante à sua alegada maioridade e menoridade sucessivamente invocadas será o leitor levado a crer que este engano deliberado, que a Requerente tentou provocar nas autoridades belgas, desfeito por aquela ignorar o funcionamento do sistema Eurodac, deveria quase automaticamente, e sem maior apreciação, levar à recusa em conceder o estatuto de refugiado, bem com à rejeição, por inadmissível, da queixa que se viesse a tentar com fundamento na recusa em conceder já este estatuto, da parte do TEDH. Não sucedeu assim.
Posta esta interrogação de partida, o certo é que as autoridades belgas levaram F.B. a consentir (de modo algo forçado por ser um exame sine quo non, na sua circunstância, da parte das autoridades de imigração), na ignorância dos seus direitos de defesa (nomeadamente o serem atos médicos sujeitos a formal consentimento do lesado, com esta tipificação em direito civil, mas sendo este consentimento sempre obrigatório em qualquer ato de natureza pública e privada), na prática de exames de densitometria óssea, tendentes a definir a sua idade, para o efeito de saber se seria menor não acompanhada, caso em que lhe assistiria a proteção das autoridades, no entender destas, ou maior, caso em que não beneficiaria de qualquer apoio, o que qualificaria a sua imigração de ilegal (em verdade ilícita uma vez que viajar pode ser crime hoje em dia, tanto mais que qualificada pela mentira inicial da Requerente).
Estes exames recorrem à aplicação de fortes raios “X”, bem acima dos teores das comuns radiografias pulmonares, no sentido de se apurar a idade da pessoa interessada (o chamado “triplo teste ósseo”). São claramente prejudiciais à saúde pela intensidade das suas radiações ionizantes.
Para uma idade alegada próxima de 18 anos, viria a ser lhe diagnosticada uma idade próxima dos 21 anos e seis meses, com um afastamento típico de 2 anos entre a idade declarada e a idade real da paciente. Mediando 3 anos entre 18 e 21 pode avaliar-se como a diferença efetiva da idade por ter ainda um afastamento com o critério do afastamento típico de 2 anos, este parecendo traduzir mais um mínimo do que uma infalível e sempre igual bitola.
Uma vez verificada a discrepância entre as datas de nascimento declaradas, nomeadamente a declaração de ter nascido em 7 de maio de 2001, prestada perante as autoridades alemãs, e a alegação de menoridade não acompanhada feita perante as autoridades belgas, foi inicialmente atribuída à Requerente a data de nascimento de 1 de Janeiro de 1997, e, depois, a de 18 de janeiro de 2003. Em consequência, a Requerente foi transferida para um Centro de Retenção para maiores estrangeiros, aonde beneficiou do apoio de uma advogada belga.
Ao recorrer da parte graciosa (administrativa) que levou à sua detenção no centro de retenção para adultos para o tribunal administrativo competente (fase contenciosa), a interessada requereu a suspensão da eficácia jurídica deste ato, invocando a necessidade da continuação dos estudos de segundo ciclo do liceu que se encontrava, então, a frequentar.
O Direito
Foi confrontada com a recusa do Conseil d’Etat em lhe conceder esta suspensão de eficácia do ato de detenção.
Este problema é da mesma natureza jurídica que o conhecido problema (para os mais velhos) da suspensão da eficácia da decisão de não concessão do estatuto de refugiado da parte do Diretor do serviço de Fronteiras competente, o que abre, no prazo da interposição do recurso contencioso para o Tribunal de Segunda Instância competente, a possibilidade da sua execução pelos serviços de polícia, materializando-se a expulsão da pessoa requerente de asilo e tornando geralmente inútil, salvas honradas e raras exceções, a lide contenciosa administrativa por desaparecimento do sujeito e, por conseguinte, por extinção do seu objeto processual, a contestação da decisão de não concessão do estatuto de Refugiado. Isto viria a prejudicar a imediata prossecução do ensino liceal de segundo ciclo, que estava então a frequentar num Liceu belga. Não se trata, portanto, aqui da possível expulsão, mas dos danos que uma recusa cega da concessão da suspensão da eficácia a um ato administrativo, num processo, de resto, tendente à expulsão caso viessem as autoridades de imigração a obter vencimento, lhe causariam.
A final, derrotada internamente, a Requerente apresentou queixa ao TEDH pelos factos expostos com o fundamento nas violações alegadas do art.º 8.º § 1 da CEDH (direito à vida privada e familiar) 13.º (direito a um recurso efetivo das decisões da Administração Pública), e 14.º (não discriminação no tocante à proibição dos casamentos forçados). Sendo os art.ºs 13.º e 14.º de invocação dependente, associou-os (a base de dados pública e não reservada HU-DOC do TEDH usa o “x” , “vezes”, para exprimir esta associação) à invocada violação do art.º 8.º § 1 da CEDH.
A Avaliação do TEDH
O TEDH admitiu logo este caso, que se enquadra bastante de perto da tipologia dos seus Acórdãos sobre a matéria, que cita.
No tocante ao fundo, confrontado com a hesitação da Administração belga quanto à data imputada de nascimento (1997 e 2003, o que representa uma muito grande variação de critério científico de determinação da idade) e com a questão da invocada desproporção entre os meios empregues e a necessidade do caso, o TEDH recorreu ao seu triplo “teste de Convencionalidade” que exprime, por meio de indicadores concretos, se os direitos constantes da CEDH foram observados ou não pelo Estado.
À primeira pergunta do seu teste, a saber se o comportamento das autoridades corresponde a um interesse legítimo, respondeu que sim, pois é claro que a adjudicação das questões de imigração sob a sua jurisdição, é uma das funções do Estado. E, concretamente, a gestão da imigração e dos seus fluxos está lhe cometida.
À segunda questão, a de saber se existia previsão legal para a prática destes exames como meio de diagnóstico de menoridade ou de maioridade de cada pessoa, para o efeito da aplicação das cominações legais correspondentes, também respondeu pela afirmativa, pois estes testes encontram a sua justificação na lei belga aplicável.
À terceira questão, a de saber se os testes seriam necessários numa sociedade democrática, o que representa o critério da proporcionalidade, no sentido de saber se a medida aplicada foi adequada ao fim que a lei prossegue em abstrato, respondeu negativamente.
Esta resposta tê-la-á certamente encontrado o TEDH por meio da discrepância entre as datas de nascimento imputadas à Requerente, demasiado distantes no tempo e sem qualquer correspondência, com a realidade em razão do seu afastamento. Esta flutuação, da parte dos serviços, terá sido de natureza apta a inutilizar a mentira sobre a sua data de nascimento, assumida pela Requerente e denunciada pelo Eurodac alemão.
O outro indicador foi relativo aos meios de diagnóstico utilizados. Além das radiações ionizantes serem nocivas para a saúde da interessada, o facto de esta se ter visto constrangida pelas circunstâncias (deteção da verdade pós mentira descoberta relativa à sua idade) a preencher o formulário-tipo de consentimento, sem grandes esclarecimentos sobre a natureza médica do ato em questão, pelo simples automatismo obrigatório da circunstância em que se veio a encontrar (deteção obrigatória da idade para o preenchimento do critério legal da maioridade), integrou, segundo o TEDH, a desnecessidade, em razão da sua falta de proporção, da medida aplicada.
Pois todo o ato médico de natureza invasiva (como é o caso destes exames) exige o consentimento do lesado prestado como tal. Ora esta natureza jurídica do consentimento do lesado não foi minimamente realçado pelas autoridades. Nem tão pouco o foram as suas dimensões invasiva e prejudicial à saúde.
Considerou, assim, o TEDH ter ocorrido a violação do art.º 8.º § 1 da CEDH, tendo esta alta instância descartado as demais invocações feitas (art.º 8.º § 1 x art.º13.º, e art.º 8.º §1 x 14.º) por estes meios não terem sido invocados internamente.
Podemos perguntar-nos se a mentira detetada da parte da Requerente no sistema Eurodac alemão não teria conduzido a um outro desfecho se as autoridades belgas não tivessem adotado uma conduta eivada de algum preconceito de natureza, quiçá, punitiva. Pois a imputação de nascimento em 1997, corrigida para 2003, revelou o que pode ter sido uma imputação por castigo que viria a ser corrigida a seguir por um médico, muito possivelmente, a significar a insustentabilidade técnico-jurídica da primeira imputação de idade.
Por outro lado, não deixa de ser sensível a questão dos casamentos forçados que podem ser confirmados pela obtenção de informação de conhecimento geral sobre as práticas matrimoniais das famílias da Etnia Fulani de Confissão Muçulmana.
O certo é que a Requerente acabou por ser contemplada com a concessão do Estatuto de Refugiada no decorrer do processo de queixa e que à data desta Divulgação, agora certamente adulta e maior, já terá concluído o seu segundo ciclo de estudos liceais e estará muito possivelmente empregada ou até a seguir também uma licenciatura.
De interesse é a postura da jovem corresponder ao que geralmente se pode pretender de um candidato à imigração, no sentido da aprendizagem da língua (mesmo se já a dominaria por vir de uma ex-colónia francesa) do pais de acolhimento e da sua integração neste país pela via dos estudos, pelo menos de liceu, o que nem sequer é exigido, mas tão só e apenas por alguns, o conhecimento da língua do país de acolhimento.
Autor: Paulo Marrecas Ferreira
Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos