TEDH, 3.ª Secção, A.E. c. Bulgária, Queixa n.º 53891/20, Acórdão de 23 de maio de 2023

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CEDH, Artigo 3.º e 14.º Violência e discriminação contra as mulheres.

CEDH, alegação de violação dos arts.º 3.º e 14.º da CEDH, por violência e discriminação contra uma menor de 15 -16 anos de idade. Problema sistémico na Bulgária, violação.

Enquadramento do caso.

A queixosa, uma rapariga de 15 anos, nasceu em 2004, e vive numa vila da Bulgária. Queixou-se contra o Estado, nos termos dos art.ºs 3.º e 14.º da CEDH, da inadequada resposta das autoridades às suas queixas internas, pela prática de violência doméstica, as quais nunca foram capazmente examinadas, tendo a intervenção das autoridades de segurança social, em seu benefício, acabado por permanecer sem consequência útil para ela.

Os factos.

A rapariga em questão vivia uma relação difícil com a mãe, após a morte do seu pai, em 2018. Com a idade, apenas, de 15 anos, encetou uma relação de natureza sentimental, com um homem de 23 anos de idade. Em abril de 2019, mudou-se com ele para a sua casa, numa vila próxima, providenciando o companheiro pela sua subsistência e alimentação. A rapariga passou a viver na condição de doméstica e passou a sofrer da prática, sobre ela, de episódios de violência.

Até que, em 8 de setembro de 2019, foi mais uma vez violentamente molestada pelo companheiro, tendo, então, fugido do domicílio de facto para o hospital distrital, onde foi vista por um médico forense. O exame pericial acusava hematomas e escoriações várias, alguns dos quais de dimensão considerável nesta espécie de contextos de violência, em várias partes do corpo. Segundo o relatório elaborado pelo médico forense, as marcas das ofensas corporais sofridas sustentavam as queixas de violência doméstica apresentadas pela queixosa.

Toda esta matéria foi apresentada ao Ministério Público (o MP) pela Administração Hospitalar, em cumprimento dos seus deveres legais. Foi relevante a informação da condição de menor desta rapariga. Da prova, entretanto recolhida, e dos depoimentos de outras vítimas do mesmo agente, ficou a saber-se que o agressor também agredira a irmã da vítima e a mãe desta. Também ficou provado que o agressor empurrara a vítima de um outeiro para um monte de lenha depositado no fim do declive. Também os Serviços Sociais (os SS) elaboraram um relatório, acionados que haviam sido pela mãe da rapariga, antes da mudança desta. A rapariga vítima, ora queixosa, chegou a ser internada numa instituição psiquiátrica para menores e adolescentes, no mesmo ano de 2019, tendo sido proposta a sua colocação num centro de crise, atendendo ao perigo em que se encontrava de ser vítima de tráfico e exploração sexual. Os SS prestaram apoio psicológico a ambas, a mãe e a filha. Uma vez que se encontrava incapaz de cuidar da sua filha, esta foi colocada numa instituição da SS, fora da sua família, no termos da Lei de Proteção de Crianças em vigor.

A rapariga foi entrevistada pelo MPº, confirmou a violência doméstica por parte do seu companheiro, mas afirmou pretender desistir da queixa, pois acreditava que a situação não se iria repetir… A mãe, que também foi ouvida em suas declarações pelo MP, confirmou as queixas da filha e explicou que, na verdade, esta se tinha deslocado da comunidade de residência para uma localidade próxima, eventualmente pertencente ao mesmo concelho, mas a uma certa distância da sua casa. Era frequente a filha telefonar à mãe a queixar-se, mas sempre que esta propunha ir busca-la, a rapariga nada respondia e desligava o telefone, anulando assim, qualquer tentativa de se chegar a ela.

Em fevereiro de 2020, o MP tomou decisão sobre a queixa, entendeu que as ofensas sofridas não ultrapassavam um certo patamar de gravidade “tolerável”, e que nem se podia qualificar as marcas na garganta e no pescoço como uma tentativa de homicídio por estrangulamento.

A rapariga não se conformou, e esgotou os recursos judiciais e argumentativos internos, até estar em condições de se queixar ao TEDH, o que fez. 

O Direito.

Após ter examinado o direito nacional e internacional pertinente, o TEDH fixou o quadro jurisprudencial, em torno, essencialmente, do seu Acórdão proferido no caso Myunyun c Bulgária (2015, ver § 42, do Acórdão sub-judice.

O perito interno qualificara a situação como de perigo iminente para a vida da vítima e dera a fundamentação da promoção penal por ofensas corporais e ofensas corporais qualificadas (além de agravadas), pela particular violência exercida sobre a rapariga.

O TEDH citou ainda a CRC (Convenção sobre os Direitos da Criança e seus 2 protocolos) e a Convenção para os Direitos das Mulheres (CEDAW). Citou ainda a Rec (2002) 5 do Conselho de Ministros do CoE (com). Citou a Convenção do CoE contra a violência contra as mulheres e citou, enfim, o Relatório do Sra. Comissária dos direitos humanos do CoE, a seguir à sua visita à Bulgária.  Prima facie, não podia ter o MP búlgaro ter procedido em tamanha desconformidade com o que se consta dos textos internacionais em vigor.

O enquadramento interno deste processo.

Para entender o que se passou neste caso, há que atentar na comunhão de habitação entre a vítima e o agressor e no facto de o tipo de ilícito culposo exigir uma comunhão que se assemelhe com a vida conjugal, acabando por fixar um período de coabitação demasiado longo em relação à realidade vivida, para que possa operar com eficácia a repressão penal da violência doméstica em muitos destes casos de curtas frequências temporais de comunhão de habitação. 

O Provedor de Justiça Búlgaro, reconheceu o problema, tendo emitido recomendações sem efeito à SS. O Comité Helsínquia (o CH, no Acórdão, BH, §§ 57-59), alertou para o facto de que o Ministério da Administração Interna emitira mais de 1000 Despachos de proteção de vítimas no contexto da luta contra a violência doméstica, no País. A associação Animus, uma ONG de direitos humanos relatou as queixas de 1931 mulheres e 425 homens, por violência doméstica.

Por seu turno, o Indicador de Género da EU (Gender Equality Index) verificou que, no tocante à violência contra as mulheres, a Bulgária encontra-se numa das piores posições da U.E. (posição de 44,2 contra uma média de 27, 2 nos demais países da EU relativamente à ausência de proteção das mulheres vítimas).

Enfim, em matéria estatística, a rede nacional para as crianças búlgaras registou que, no 1.º semestre de 2020, 342 mulheres foram vítimas de violência.

Standards seguidos pelo TEDH.

Após ter examinado os dados supra, o TEDH enunciou, uma vez mais, (desta vez não em cirílico, ver § 35); a sua jurisprudência de referência (§§ 84 a 89). Entre estes precedentes estão os Acórdãos proferidos nos casos Dimitar Shopov c. Bulgária (2013), Volodin c. Rússia ( 2019), Opuz c. Turquia (2009, também objeto de divulgação nesta página), Bevacqua c. Bulgária (2008), Hajduová c. Eslováquia (2010), bem como Kurt c. Austria (2021) e Talpis c. Itália (2017).

O TEDH insistiu em que a violência doméstica pode acontecer em toda a parte, e que é caracterizada por ser uma discriminação invisível, pois não assenta em nenhum marcador externo visível de diferença (como a cor da pele, a deficiência, o modo de trajar de certas comunidades, etc), não se podendo dizer, sendo as mulheres certamente um grupo vulnerável, serem as mulheres um grupo minoritário. E por esta matéria ser, assim, sensível, merece um particular cuidado. Por as mulheres constituírem, não um grupo minoritário, mas certamente um grupo vulnerável (logo uma parte maioritária da maioria pode ser vulnerável), as ofensas que lhes são dirigidas merecem uma intervenção particularmente pronta, imediata, da parte das autoridades. Ora isto falha, e pelos vistos, muito, na Bulgária.

Elementos do processo interno e da lei merecedores de eventual censura da parte do TEDH.

O TEDH passou à aplicação destes critérios ao caso em apreço, tendo recordado que o art.º 3.º da CEDH implica na definição de “maus tratos”, o comportamento que consiste em retirar a sua base de sustentação à vítima, no sentido de, ao promover a sua auto desvalorização em contexto de desespero, anular a sua capacidade de resposta (“to debase” na expressão empregue pelo TEDH).

O TEDH verificou imediatamente a colocação da vítima no quadro desta previsão do art.º 3.º da CEDH, em razão do relatório médico forense. O seu exercício passou, assim, por verificar a seguir se não houve nenhuma exceção, dentro do caso concreto, à verificação da aplicação deste preceito convencional (por se encontrar, numa expressão jurisprudencial portuguesa, tabelarmente verificado).

Para o TEDH, a queixa da rapariga dividiu-se em dois pontos:

1. A lei geral e especial dedicada ao combate à violência doméstica é deficientemente aplicada.

2. No seu caso particular, as autoridades nem sequer se deram ao trabalho de examinar as suas queixas.

O TEDH admitiu a relevância de ambas as queixas e passou a examiná-las.

O julgamento das queixas da rapariga pelo TEDH.

1. O quadro legal búlgaro.

Quanto a este quadro legal, o TEDH observou que nem sempre as queixas que lhe são dirigidas incidem no âmbito do art.º 3.º, podendo também recair no do art.º 8.º § 1 o direito à vida privada e familiar das vítimas.

O TEDH observou que, na jurisprudência interna búlgara, para um caso ser qualificado como de violência doméstica, devem existir pelo menos 3 ocorrências de violência, pois os tribunais internos exigem uma vinculação juridicamente relevante para a qualificação de uma violência como conjugal, por conseguinte como violência doméstica (não importando o vínculo contratual formal do casamento, mas sendo estabelecida uma analogia com a vida marital por via da duração temporal da comunhão de habitação, como referido supra). O TEDH recordou que, o que falhou para o preenchimento do tipo legal de violência doméstica, foi a coabitação prolongada deste casal.

Uma vez que a rapariga fugiu de casa em 2018, já estava fora do domicílio “de facto” (numa analogia a uma longa união de facto que conjugalizasse a relação entre ambos) em 2019. Ora isto não representaria “tempo bastante” de coabitação para a relevância “conjugal” da violência doméstica, embora fosse violência reconhecida pela Justiça. Resta saber com que consequências, uma vez que tudo acabou por ser arquivado.

E, por uma questão técnica que impede a consideração, assim descrita, de muitos e frequentes casos de violência no namoro, com alguma comunhão de habitação envolvida, pois se exige a coabitação mínima de 2 anos, uma grande parte do que poderia ser violência doméstica por suceder debaixo de um teto comum em comunhão de, pelo menos, uma parte significativa da vida destes casais de facto (ver o § 100 do Acórdão), o TEDH entendeu que as disposições do direito penal búlgaro não são efetivas nos casos de violência doméstica, pois fica sem guarida uma enorme parte destes casos.

2. O caso particular desta rapariga.

O TEDH passou à aplicação das suas observações e conclusões sobre a violência doméstica na Bulgária, ao caso concreto desta rapariga. E verificou, com alguma segurança, que a situação particular desta rapariga se enquadra perfeitamente no contexto geral de violência doméstica, dentro dos casos de exclusão de proteção mercê do escasso tempo legal típico de coabitação (inferior a 2 anos). E isto é tanto mais chocante, segundo o TEDH, quanto esta rapariga beneficia, nomeadamente, do apoio das autoridades da SS. Além disto, existiu uma circunstância que pareceu arbítrio do MP. Porque a rapariga se recusou a submeter-se a um exame ginecológico requerido pelo MP, este arquivou o caso.

Verificou-se assim, tanto no quadro legal (1.) como no caso particular (2.) a violação do art.º 3.º da CEDH.

            O exame da queixa por discriminação associada ao art.º 3.º em razão da condição feminina da rapariga (CEDH, arts. 14.º + 3.º).

Também admitiu a queixa neste segmento da violação do direito à não discriminação. Apesar da objeção do Governo, segundo a qual a rapariga não havia esgotado o mecanismo nacional interno de queixa por discriminação.

Para o TEDH, os standards aplicáveis encontram-se nos casos Volodina  e Y e outros c Bulgária (cits supra).

O fundamento da queixa por discriminação, em conjunção com o art.º 3.º da CEDH é a condição de mulher. Com efeito, ao estabelecerem um tipo legal tão exigente, na verdade, o que as autoridades do Estado fizeram, foi admitir a violência contra as mulheres numa dimensão inaceitável, relativamente aos patamares do “ consenso “ europeu.

Para o TEDH, este já é o terceiro caso em que se verifica a violação do art.º 3.º da CEDH em situações análogas à descrita (sem contar os que se enquadram na previsão do art.º 8.º da CEDH, como observado supra). Sendo que esta violação decorre do estreitamento do tipo legal, ao nível da descrição típica de facto (o conhecido Tatbestand, ou Fattispecie), que exige uma comunhão de habitação superior ou igual a dois anos.

O TEDH notou que as autoridades búlgaras não envidaram quaisquer esforços para corrigir a situação, apesar das denúncias, das críticas em relatórios internacionais e das condenações por órgãos internacionais de julgamento. A Bulgária também não ratificou a Convenção do CoE, dita de Istambul, contra a violência contra as mulheres. Embora nada o vincule, é prova indiciária bastante de uma prática tendente à assunção de um modo implícito, da discriminação contra as mulheres. Verificou-se, assim, nos dois segmentos de queixa, a violação da proibição da discriminação do art.º 14.º da CEDH.

Ou de como uma rapariga que hoje talvez ainda não seja maior (na Bulgária a maioridade atinge-se aos 18 anos…), conseguiu desafiar e vencer um Estado (ou da fragmentação do Direito internacional público em razão de mecanismos de queixa que igualam particulares a Estados).

Mitiga a força da última observação, a consciência do inegável e não merecido sofrimento que esta rapariga enfrentou neste seu percurso de combatente.

O presente Acórdão foi votado por unanimidade sem opiniões concordantes ou concordantes parciais.    


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos