TEDH, 3.ª Secção, Meslan c. Bulgária, Queixa n.º 24108/15, Acórdão de 02 de maio de 2023

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CEDH, Artigo 10.º § 1, Direito à liberdade de expressão.   

CEDH, alegação de violação do art.º 10.º § 1 da CEDH, em razão da proibição de um candidato autárquico poder expressar-se na sua língua regional.

Enquadramento do caso.

Meslan, líder de um partido político da minoria turca, que se apresentou as eleições legislativas que tiveram lugar em 2013, na Bulgária, queixou-se ao TEDH por lhe ter sido imposta uma sanção administrativa, em razão de se ter expressado publicamente na língua turca., uma língua da minoria a que pertence. 

Os factos.

O Código eleitoral turco aplicável não permite aos candidatos exprimirem-se em língua diferente da maioria, ex-vi dos princípios republicanos da unidade e da firmeza da soberania do Estado. Foi, de resto, esta a solução dada no Acórdão do TEDH em apreço.

Meslan invocou em sua defesa perante os tribunais búlgaros, o caráter taxativo da enumeração das restrições permitidas contra a liberdade de imprensa. A que lhe foi imposta, não constando do mencionado elenco taxativo, não podia ter sido aplicada. Em seu parecer, o art.º 133.º n.2 do Código Eleitoral ofenderia a disposição do § 2 do art.º 10.º da CEDH, além, naturalmente, do seu 1.º parágrafo. Determinante na aplicação da sanção administrativa, foi o ter-se expressado na língua turca sem a assistência de um intérprete, que, de certo modo, teria ajudado a mitigar o impacto direto do discurso, como apelo nacionalista aos eleitores.                                                                                            

O Direito.

Não sabemos, do Acórdão do TEDH, na exposição da matéria de facto, se esta sanção administrativa tem a natureza de multa (ou seja, correspondente a um ilícito penal), ou de coima (meramente administrativa). Mas sabemos, da sua jurisprudência, que o TEDH considera de natureza penal uma sanção administrativa nacional sempre que esta interfere na aplicação de uma disposição da CEDH, em razão do caráter desproporcional e punitivo do encargo. Podemos, pois, entender, como regra geral, que sempre que o TEDH concede importância a uma sanção administrativa, esta reveste-se, aos seus olhos, da natureza penal, pelo ónus que impõe ao queixoso. Isto faz tanto mais sentido quanto nas Repúblicas democráticas da Europa, toda a violação às leis eleitorais se reveste desta natureza, em razão do caráter sagrado do pluralismo democrático, em torno do exercício livre e não constrangido, do direito de sufrágio. Por esta razão, as sanções às leis eleitorais tendem a assumir a natureza de sanções penais. Pelo que o assunto, afinal, é de assumir como da mais elevada importância.

No plano da admissibilidade,

Após o exame, a que procedeu, dos textos de direito internacional aplicáveis, com um particular enfoque para a Convenção Quadro para a Proteção das Minorias Nacionais na Europa, de 1994, ratificada pela Bulgária em 1999 (a CQPMN), do Conselho da Europa (o CoE); o TEDH pôde verificar que o Comité Consultivo desta Convenção emitiu um Parecer n.º 4, relativo a esta precisa questão, na Bulgária, incitando este país a cumprir os seus compromissos, assumidos no quadro desta Convenção. Também a Comissão de Veneza e o Escritório para os Direitos Humanos da OSCE, já tinham assumido posição crítica em relação à Bulgária, no tocante a este assunto. A estas instituições de vários fora europeus, se juntou o Congresso dos Poderes Locais e Regionais da Europa. O TEDH ainda procurou conhecer o estado desta questão noutros Estados Parte no Estatuto do Conselho da Europa e na Convenção Europeia dos Direitos Humanos (a CEDH). Chegou, a este respeito, à conclusão, de que está generalizado o uso das línguas minoritárias para vários efeitos nas legislações dos vários Estados Parte no CoE.

Apesar das objeções do Governo (existiria ainda a possibilidade de acionar o Tribunal Constitucional, o TC, mas esta objeção foi rejeitada pelo TEDH, pois a eficácia dos Acórdãos do TC limita-se ao futuro [efeito ex tunc e não ex nunc], logo ficaria sempre excluída a validação a posteriori por esta instância do emprego da língua turca naquele preciso contexto eleitoral [sempre anterior a uma posterior, por definição, decisão do TC que sobre este viesse a versar]), pelo que, o TEDH admitiu a queixa, nos termos do art.º 35.º da CEDH.

No tocante ao mérito da questão, o TEDH aceitou a existência de uma previsão legal sobre este tema, a qual visa tutelar um interesse legítimo, qual seja o da unidade e da indivisibilidade da soberania popular da Bulgária, que se exerce nas formas previstas na Constituição e na Lei. Quanto ao efeito sancionatório deste regime, ele é conhecido ou pelo menos cognoscível pelos políticos, logo, também se encontra satisfeita a exigência da clareza da norma quanto aos efeitos associados à sua cominação em razão do preenchimento da sua previsão a despoletar a correspondente estatuição. Ficava para o TEDH, saber se a medida “era necessária numa sociedade democrática”, ou seja se se mantinha proporcional no tocante ao meio, em relação ao fim por ela visado.

O TEDH recorreu aos vários standards constantes da sua jurisprudência Handyside v. UK (de 1976), Morice c. France (2015, também objeto de divulgação nesta página), Pentikainnen c. Finlândia (também de 2015), Bédat c. Suisse (de 2016, também objeto, a seu tempo, de divulgação nesta página), e, no tocante a Acórdãos intermédios entre estes últimos e o proferido no caso Handyside, ao Acórdão Perna c Itália (Grande Chambre, 2003, também objeto, a seu tempo, de divulgação nesta página), e Ekin c. França, de 1998.

O TEDH recordou que não lhe cabe substituir-se às autoridades nacionais na decisão dos casos, mas examinar, à luz da informação de que dispõe, se os critérios do seu método de avaliação da conformidade com a CEDH (o chamado Teste de Convencionalidade) se encontram preenchidos, neste caso, em particular, o seu conhecido teste de proporcionalidade (dentro do Teste de Convencionalidade subdividido entre legalidade e fim legitimo, previsibilidade da cominação legal, e proporcionalidade), a saber, se a medida é necessária numa sociedade democrática.

O TEDH destacou que o enfoque da questão da liberdade neste caso, não está na partilha de ideias que chocam, perturbam ou inquietam, mas no uso da língua minoritária nas relações públicas, no seio do Estado; e não no uso da língua minoritária para o efeito de comunicar com as autoridades (vg locais), para o efeito da formulação de requerimentos para obtenção de vantagens devidas de acordo com garantias legais, mas, concretamente, para o efeito da comunicação política, uma área muito específica, dentro da liberdade de expressão (§§ 57 e segs. do Acórdão em apreço).

Neste Acórdão, o TEDH louvou-se no bom senso ao nível da motivação (cerca de dois Acórdãos, apenas, o fizeram, citados no § 60 deste Acórdão) sobre a comunicação de mensagens políticas, em língua minoritária, ao público. Este Acórdão, ora em apreço, é, ele próprio, um Acórdão raro, por versar um tema relativamente infrequente, pelo menos, por agora (podemos perguntar-nos o que será, quando países poderosos, com minorias nacionais expressivas, estiverem confrontados com esta questão, quer tenham, ou não, ratificado a CQPMN), qual seja o tema de atos de comunicação política eleitoral numa língua minoritária.

O bom senso está em considerar que a liberdade de expressão está amplamente admitida no espaço da CEDH, e que há que aplicar, como sempre, o padrão do efeito dissuasor de toda a proibição do discurso político, sejam quais forem as razões apresentadas.

A própria unidade e indivisibilidade do Estado que é soberanamente exercida coletivamente pelos cidadãos, segundo as formas previstas na Constituição e na lei, não é fundamento bastante, pois numerosos países, entre os quais o nosso (apesar de rejeitarmos divisões internas que pudessem conduzir a um federalismo dentro do Estado Português), admitem o uso de línguas minoritárias nas comunicações de natureza pública oficial (no caso português, o exercício da Língua da Comunidade de Miranda).

Por isso, faz todo o sentido considerar que, como no caso do vencimento das queixas-crime dos políticos por difamação, que despoletam os competentes processos de queixa junto do TEDH, da parte dos cidadãos envolvidos, o efeito constrangedor de uma medida administrativa (que tem a dimensão penal por a medida ser assumida coação [o chamado “chilling effect”]) deve manter-se, também neste caso, por ora ainda algo raro (esperemos pelos novos casos decididos pelo TEDH com este recorte), a desafiar a jurisprudência do TEDH; este efeito de pena é o critério último da proporcionalidade da medida, ou seja, da sua necessidade numa sociedade democrática.

Verificou-se, assim, a violação do art.º 10.º, § 1.º da CEDH, Direito à liberdade de expressão. O TEDH não considerou, em razão da resposta dada ao primeiro; o segundo segmento da queixa, em que era invocada a discriminação cumulativa prevista nos art.ºs 10.º§§1 e 2, e 14.º (violação do princípio da não discriminação em relação com a liberdade de expressão de políticos da minoria turca) bem como a violação do art.º 13.º da CEDH (direito a um recurso efetivo das violações, pelo Estado, das disposições relativas aos direitos humanos).

Este muito importante Acórdão, de que será interessante acompanhar a evolução jurisprudencial com o correr do tempo, que temos agora pela frente, foi votado por unanimidade, sem opiniões concordantes ou concordantes parciais.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos