TEDH, 5.ª Secção, B.M. e outros c. França, Queixas n.º 84187/17, Acórdão de 6 de julho de 2023
CEDH, Artigo 3.º e 13.º Maus tratos em detenção, prisão de Fresnes.
CEDH, alegação de violação dos arts.º 3.º e 13.º da CEDH, em razão de maus tratos em detenção, nomeadamente, o problema das buscas corporais a nu, sem faculdade efetiva de recorribilidade.
Enquadramento do caso.
Seis franceses, reclusos em cumprimento de pena no estabelecimento prisional (o E.P.) de Fresnes, queixaram-se contra a França das difíceis condições de detenção neste E.P. (art. 3.º da CEDH), bem como da impossibilidade para eles, de recorrerem das decisões, não de detenção (o que relevaria do art.º 5.º § 4 da CEDH), mas relativas a vários trechos da execução da sua pena, decisões, portanto, afetando as suas condições de vida em prisão.
O não recurso destas decisões afetando as suas condições de detenção, foi, assim, o outro ponto da sua queixa, sob o prisma geral da recorribilidade dos atos da Administração Pública (a A.P.).
Os factos.
Os queixosos foram detidos na prisão de Fresnes entre 2016 e 2019. Por períodos alternativos para cada um deles.
As condições gerais de detenção, na prisão de Fresnes, estão descritas no Acórdão do TEDH referido no caso J.M.B. e Outros c. França (queixas n.º 9671/15 e outras), em que se verificava, em Janeiro de 2019, uma taxa de sobre população de 197%.
Destes casos, três foram tema de resolução amigável do litígio, o que, dos seis, afasta três da consideração do presente Acórdão.
Quanto aos casos por tratar mediante este Acórdão (a significar que também nesta 5.ª seção, o TEDH rejeitou as Declarações unilaterais do Governo, para casos, segundo o Tribunal, de alta gravidade), os Queixosos preencheram o modelo do Observatório internacional das prisões (o OIP) e queixaram-se integralmente das buscas corporais em condição de nudez, segundo eles, realizadas em condições de extrema violência, após a sua saída da sala de visitas, a cada vez que alguém os vinha ver.
Uma vez que a decisão de proceder às buscas corporais em condições de nudez não obedecem a uma forma estrita de processo, não conseguiram as vítimas demonstrar a quantidade de buscas corporais a nu em que foram revistados. Apesar disso queixaram-se destas práticas demasiado intrusivas da sua privacidade.
Na questão do modelo do OIP, alguns dos reclusos acusaram as buscas em condições de nudez. Colocaram a cruz no lugar competente, e ao lado, destacaram que são sujeitos a uma revista corporal em condições de nudez. Outros, neste mesmo lugar do formulário acusaram as posturas difíceis a que foram sujeitos. Queixaram-se da demasiada dureza deste regime e deste ser “um interminável calvário”.
O Direito.
Os queixosos indicaram decisões de natureza judicial e afins, suscetíveis de fundamentar os seus raciocínios:
- A Sentença do juiz administrativo dos processos de urgência (le juge des référés) que determinou a suspensão de uma decisão tácita mediante a qual a Diretora do EP de Fresnes tinha instituído um regime de buscas corporais sistemáticas relativamente ao conjunto dos reclusos com acesso à sala de visitas, de acordo com a Ordem de Serviço, de 05/06/2012, exarada a este respeito.
- Um relatório do Comité para a Prevenção da Tortura, do CPT do CoE ao Governo francês, no seguimento da sua visita à prisão de Fresnes, segundo o qual a maior parte dos reclusos são sujeitos a revistas corporais muito violentas e invasivas, em condições de nudez e exposição.
- O Relatório do Inspetor geral das Prisões (o IGP) que indicou medidas ao Governo francês, segundo o qual existe um perigo de aplicação sistemática e totalmente indiscriminada destas revistas corporais de grande exposição e humilhação.
- O juiz administrativo dos processos urgentes salientou noutra decisão, o perigo de uso sistemático desta medida, tendo determinado num seu acórdão, a imediata cessação da conduta desconforme da parte da Administração penitenciária.
- Noutros Relatórios, o IGP destacou a prática repetida e não justificada das revistas corporais em condições de nudez após as visitas. Estas buscas são, na sua determinação, da competência do Tribunal de execução das penas. Logo não podem ser assumidas arbitrária ou unilateralmente pela A.P.
- Enfim, o Conseil d’Etat julgou que as revistas corporais são da competência do Tribunal de execução de penas, e não podem ser diretamente assumidas pelo EP. Finalmente, deve existir a possibilidade material de acionar o juiz administrativo dos processos urgentes para formular oposição a esta medida, com natureza processual e a correspondente eficácia.
Standards seguidos pelo TEDH.
O TEDH apensou as queixas e examinou-as no plano da admissibilidade. Elencou como sua jurisprudência de referência, os casos:
-Selahattin Demirtas (22/11/2020),
-Vuckovic e Outros (25/03/2014),
- Pagenne (19/01/32023).
No tocante à possibilidade de os reclusos acionarem o juiz dos processos urgentes; o Governo opôs que esta exceção deveria ser assumida em cada visita que viesse a implicar seguidamente esta busca invasiva. Referiu para este efeito, a jurisprudência do TEDH (Acórdão El Shennaway, de 20/01/2011), que reconhece a valia deste processo, o qual implica a dispensa de advogado. Trata-se do Référé-Liberté.
O TEDH entendeu que procedia a exceção apresentada pelo Governo francês em torno desta medida, que os reclusos tinham o ónus de ter esgotado. Não o tendo feito a cada visita, não pode o TEDH examinar a questão das revistas a nu após as visitas, apesar do seu carater claramente invasivo. Não se verificou, assim, neste segmento da queixa, a violação de nenhum dos invocados preceitos da CEDH.
Afastou entretanto os três casos que foram objeto de resolução amigável do litígio, mas nos outros três casos em que esta foi rejeitada, considerando que a privação de liberdade é demasiado grave para ser tratada só com dinheiro, rejeitou as declarações unilaterais propostas pelo Governo.
Esta prática foi seguida pela Seção em Aprile (1.ªSeção, 9/03/2023) e em Lalik ( 1.ª seção, 26/05/2023, ambos objeto de divulgação a seu tempo nesta página), podendo considerar-se uma prática jurisprudencial nova no método de adjudicação dos casos do TEDH. Ou seja, o TEDH não se considera vinculado, em casos de gravidade (que avalia sozinho), pela proposta de resolução amigável do Governo, uma iniciativa organizada pela Secretaria com a sua anuência, à partida, quando esta é rejeitada pela parte requerente, podendo vir a optar, em razão da sua tomada de consciência da gravidade da situação em apreço, pelo caminho da prossecução do julgamento da queixa apresentada, o que representa inovação de monta. Sendo este caso da 5.ª Seção, podemos considerar que esta prática está a generalizar-se nas várias formações do TEDH. As queixas cuja Declaração unilateral da parte do Governo rejeitou foram, assim, admitidas.
Passando ao seu mérito, uma vez afastada a questão do exame das revistas corporais a nu, por não esgotamento das vias internas de recurso, o TEDH reassumiu a sua jurisprudência de referência vertida no Acórdão J.M.B. e Outros c. França de 30 de Janeiro de 2020. Em razão da gravidade das violações encontradas pelo TEDH, a França adotou, então, a Lei n.º 2021-403 de 8 de Abril de 2021, relativa à dignidade das pessoas em regime de detenção. Ora a analogia da situação material de reclusos com a dos presentes queixosos, no mesmo período de tempo, na prisão de Fresnes (os queixosos do Acórdão J.M.B. e Outros), justifica, segundo o TEDH, a assunção de que os queixosos não beneficiaram de condições materiais de detenção dignas, nem do recurso destas condições materiais de detenção.
Por esta razão foi a França condenada por violação dos art.ºs 3.º e 213.º da CEDH.
É interessante a condenação do Estado francês segundo o regime da analogia. É preciso ver que um Estado não é um particular (que não pode ser nunca condenado por analogia, o seu caso devendo ser totalmente discriminado e examinado), e que nada permite considerar, à luz da regra da aplicação igual do regime das condições de detenção, que os queixosos pudessem ter sido discriminados favoravelmente no período que mereceu condenação da parte do TEDH, ao ponto de vir a ser adotada uma nova lei sobre dignidade dos reclusos.
Embora o Acórdão fosse votado por unanimidade, a Sra. Juíza Eloseguy (Espanha) entendeu que o Acórdão ficou aquém do que poderia ter alcançado.
Sendo a prisão de Fresnes sobrelotada, compreende-se as dificuldades de recorrer da revista corporal realizada em regime de total nudez, uma dificuldade, de resto, destacada pelo Comité para a Prevenção para a Tortura, o CPT, do CoE nos seus relatórios. Com efeito, como fazer?
O recluso vai receber a visita de um dos seus familiares, por exemplo a mãe de um deles, e já deve saber que irá ser alvo de revista corporal em regime de nudez a seguir à visita da mesma, para apurar se ela não lhe deixou uma lima na prega da pele do braço. Deve ele ser obrigado a propor o recurso em regime de prognose prévia, para acautelar que não virá a sofrer a penosa revista corporal em regime de nudez?
Isto é prático? A A.P. não vai tornar, ao título de não assumidas represálias, o regime de visitas mais duro, a seguir?
Esteve, pois, mais uma vez, bem, a Sra. Juíza Eloseguy neste voto concordante, pois, da observação do contexto se depreende que, de certo modo, cansado e receoso de uma potência europeia como a França (não tem tantas dificuldades com o Azerbaijão que certamente merece os seus duros Acórdãos), o TEDH não terá desejado abordar de frente o problema desta prática em contexto prisional.
Autor: Paulo Marrecas Ferreira
Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos