TEDH, 3ª Secção, Platini c. Suíça, Decisão de 11 de fevereiro de 2020

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CEDH, Artigo 6.º§ 1, iniquidade alegada de processo disciplinar, sendo condição de aplicabilidade a natureza penal do processo. Art.º 7.º Não retroatividade da lei penal, princípio da legalidade. Art.º 8.º, § 1, efeitos da sanção disciplinar na vida pessoal.

Michel Platini um conhecido jogador de futebol, ex-capitão e selecionador da equipa de França, de futebol, queixou-se ao TEDH, contra a Suíça, em dezembro de 2017.

Foi conselheiro do Presidente da Federação internacional de futebol (FIFA), de 1998 a 2002, altura em que cessou esta atividade, por ter sido eleito para o Comité executivo da União europeia das associações de futebol (UEFA). Veio a ser eleito Presidente da UEFA em 2007, tendo sido reeleito para esta função em 2011 e em 2015. Era também, então, o Vice-Presidente da FIFA.

Em 2007, o queixoso pedira que os 4 anos durante os quais fora conselheiro do presidente da FIFA, de 1998 a 2002, fossem tidos em conta no Plano de Previdência previsto para os membros do Comité executivo da FIFA. Foi-lhe concedida uma extensão de USD 36 000, a qual só lhe seria paga no momento da cessação de funções no seio do Comité executivo da FIFA. Em 2011, o queixoso apresentou a fatura de CHF 2 000 000 000 ao Diretor financeiro e SG Adjunto da FIFA, relativa a um complemento salarial acertado por meio de ajuste verbal, para os anos de 1998 a 2002, acrescendo à remuneração inicialmente fixada por meio de convenção escrita em 1999. Esta verba foi inscrita numa declaração de rendimentos do queixoso para o ano de 2011, nas contas do exercício de 2010 da FIFA, as quais foram arquivadas pela Comissão de finanças da FIFA.

O Ministério Público Federal Suíço abriu um inquérito por gestão danosa ao Diretor financeiro da FIFA e ao queixoso. Este processo era relacionado com o pagamento de CHF 2 000000000 ao queixoso. Este foi chamado a depor, sendo que o processo penal aberto contra o Diretor financeiro ainda corre seus termos.

Por seu turno, após um inquérito preliminar, e em relação com o processo penal referido, a Comissão de ética da FIFA abriu um processo disciplinar contra o queixoso, em razão dos atos referidos. Processo disciplinar igual foi também instaurado contra o Diretor financeiro da FIFA. Por decisão não fundamentada de 2015, a Camara de julgamento da Comissão de Ética da FIFA suspendeu o queixoso por 90 dias, tendo o Tribunal Arbitral do Desporto (o TAS) confirmado a suspensão mas determinado que esta não devia ser prorrogada. A Camara de julgamento condenou o queixoso, além da suspensão, a pagar uma multa de 80 000 francos suíços. Foi, ainda, aplicada uma pena de interdição de atividade, a qual veio a ser reduzida de 8 para 6 anos. O queixoso recorreu novamente para o TAS, o qual reduziu o período de interdição da atividade para 4 anos e a multa para 60 000 francos suíços e acrescentou que a sua decisão sanava quaisquer iniquidades processuais que pudessem ter ocorrido no decurso do processo disciplinar junto da Comissão de Ética. O queixoso recorreu em matéria cível, da decisão arbitral, para o Tribunal Federal Suíço, pedindo a anulação da sentença do TAS contra ele proferida. Alegou nomeadamente a severidade excessiva da sanção e a ofensa à sua personalidade e à sua liberdade económica. Além disso o texto da sanção teria sido demasiado vago, tornando-a imprecisa, no sentido de não se saber quais as funções que lhe passariam a estar vedadas durante o tempo de proibição da atividade. Sublinhou, enfim que, no termo do período de 4 anos de proibição teria alcançado a idade da reforma e não poderia mais exercer. O Tribunal Federal reconheceu a sua competência para decidir, mas afirmou que esta deveria limitar-se aos efeitos da sentença do TAS. E concluiu que não era arbitrária a multa, à luz da extensão da previdência e da aceitação do montante de CHF 2 000000000, que a suspensão por 90 dias e a proibição de atividade por quatro anos não eram arbitrárias e que, por esta razão, os resultados a que chegara o TAS não eram chocantes à luz do direito. Apesar da sua imprecisão, a fórmula da proibição de atividade podia entender-se com a ponderação necessária, sendo que uma interpretação excessiva desta proibição, que a tornasse excessiva, poderia sempre ser judicialmente sindicada quando aplicada. Por fim, no tocante à reforma do ex-jogador, na medida em que, no momento da aplicação da sanção, já não estava em condições de desempenhar os mesmos jogos que no passado, nada havia de desproporcional na decisão do TAS.

O queixoso apresentou, então, a sua queixa ao TEDH, por iniquidade processual, em razão do alegado no plano interno, à luz do art.º 6.º § 1 da CEDH, por violação do princípio da legalidade, acusando o TAS de ter ratificado a aplicação de um regulamento da FIFA mais recente e mais severo do que o vigente à altura da prática dos factos, e por violação do seu direito à vida privada e familiar, na vertente dos efeitos desta decisão na sua vida pessoal. O TEDH admitiu a sua competência e admitiu o segmento de queixa relativo à iniquidade processual, mas entendeu que o queixoso não esgotara os recursos internos, na medida em que não desenvolveu tão detalhadamente estes argumentos perante o Tribunal Federal, como o veio a fazer perante o TEDH. Rejeitou, assim, este segmento de queixa por improcedente.

Quanto ao princípio da legalidade, constante do art.º 7.º da CEDH, corporizado na alegada aplicação retroativa de um regulamento disciplinar mais recente e mais severo a factos anteriores à sua vigência, o TEDH procurou saber se a sanção e o processo disciplinar são penais, para o efeito da aplicação do art.º 6.º § 1 da CEDH (o qual é aplicável a processos civis e penais somente) e concluiu que não: o direito disciplinar da associação não é – regra geral – direito penal para o efeito da aplicação da CEDH, nada justificando um afastamento desta jurisprudência ao caso vertente (por referência a Bayer c. Alemanha e Oleksandr Volkov c. Ucrânia). É, nomeadamente, relevante para a caracterização como não penal de uma sanção, o facto de que as penas disciplinares são aplicáveis apenas a grupos isolados de indivíduos e não a coletividades amplas. O que era aqui o caso, tanto mais que o queixoso era um alto quadro da FIFA. Por estas razões, este segmento de queixa foi rejeitado por inadmissível.

Por fim, o queixoso alegou a ofensa ao seu direito à vida privada e familiar (art.º 8.º da CEDH) na medida em que a decisão implicaria uma proibição de trabalhar por quatro anos. O TEDH entendeu que o que atinge a vida privada do queixoso não é tanto a decisão em si, quanto os actos próprios que despoletaram esta consequência. Ainda assim, apesar deste reparo, o TEDH aceitou este segmento de queixa como admissível, na medida em que o queixoso, tendo dedicado toda a sua vida ao futebol, ficara privado da sua atividade profissional. Na medida em que a sanção foi aplicada por um organismo privado, não pode o TEDH apreciar a questão da ingerência, por exercer o seu controlo sobre os Estados e não sobre particulares. Ainda assim podia procurar se a Suíça violara alguma obrigação positiva a seu cargo, a este respeito. A questão passou, então, a ser a de saber se as autoridades de alguma forma asseguraram que a vida privada do queixoso fosse protegida em relação às decisões da FIFA. Na medida em que o direito suíço permitiu ao queixoso recorrer da decisão do TAS para o Tribunal Federal Suíço; que, num primeiro tempo as regras do direito suíço foram observadas pelo TAS e que o Tribunal federal, já integrado na estrutura judicial interna, mostrou ter examinado com cuidado as questões e fundamentou, com consciência, a decisão final, este segmento de queixa, embora admitido, veio a ser rejeitado por improcedente, à luz do artigo 8.º da CEDH.


Autor: Paulo Marrecas Ferreira  

Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos